A liberdade e o lado bom do terrível mundo líquido

As prováveis referências de Botticelli para essa obra foram os versos de Homero e Ovídio, poetas que narram o nascimento da deusa Vênus, associando-a às aguas do mar e daí, uma de suas denominações, a Vênus Anadiômene (aquela que surgiu das águas do mar). O efeito causado pelo quadro, no entanto, foi de paganismo, já que foi pintado em época em que a maioria da produção artística se atinha a temas católicos. Por isso, chega a ser surpreendente que o quadro tenha escapado das fogueiras.

Pego esse quadro como referência para falar do mundo líquido, individualista. Mas que algumas conquistas só puderam acontecer no mundo líquido. A liberdade feminina só foi possível nesse terrível mundo líquido.

Nesse mundo líquido as mulheres se libertaram de uma série de prisões que definiam o conceito de mulher. A subjetividade moderna só chegou para as mulheres no final do século XX. O exemplo clássico disso é a reprodução. Pense comigo, há uma geração apenas, uma mulher só era completa sendo mãe, estava na definição de mulher. Não ser mãe indicava que ela não era plenamente mulher. 

No nosso terrível e incrível mundo líquido a mulher pode se emancipar. A mulher deixou de ter como destino seu corpo, ela é finalmente um sujeito. E enquanto sujeito, ela pode desejar ou não desejar ser mãe.  Ser mãe é um desejo possível, não mais um destino.

O mundo líquido é ambivalente. Mesmo angustiante, acelerado e dissolvendo raizes, só no mundo líquido temos a liberdade de sermos sujeitos desejantes. 

Perdemos muitas coisas no mundo líquido, mas só ao perder, ao sermos desapegados, ganhamos a liberdade para sermos. Liberdade gera angústia, porque liberdade não é fazer o que você quer, é se responsabilizar pelo que você faz. E assumir as consequências disso.

Uma das formas de resistência ao mundo líquido, que eu sou adepta inclusive, são os coletivos. Os coletivos são movimentos que saem do individualismo, do líquido. O coletivo, empodera, acolhe, legitima e dá sentido ao indivíduo. Ou seja, o sujeito solto no mundo líquido enraíza em um grupo. 

Ao mesmo tempo que o coletivo também é muito conservador. Como por exemplo não aceitar homens nos grupos feministas. Entenda-se homem não é sinônimo de machismo, ainda que muitos (ou a maioria) seja. Assim como muitas mulheres também são. Estou polemizando do tal “lugar de fala”. 

Para a psicologia, não existe homem, não existe mulher, psiquicamente falando. Nem geneticamente é tão sólido assim. É uma construção social, de identidade. As ciências humanas estão já há mais de 100 anos tentando dissolver essa ideia de que existe uma essência feminina e masculina, ou até mesmo de raça, ainda que exista etnia. Margarete Mead que o diga. O coletivo então reinstitui a essência. Agregou e segregou.

Entende que não é totalmente terrível o mundo líquido? E totalmente agregador o coletivo? O segredo está no equilíbrio. 

O mundo líquido e sua liberdade não explicam a nossa atualidade, a nossa atualidade é consequência de um incômodo da liberdade dada pelo mundo líquido.

E a consequência é esse neoconservadorismo que temos assistido no mundo todo. Não só no Brasil (para meu acalento), se tivéssemos tido o equilíbrio entre o indivíduo e o coletivo, se a liberdade tivesse sido entendida corretamente como responsabilidade. 

Talvez, somente talvez, não estaríamos vivendo esses tempos terríveis.

Positivamente,
Milena Mendonça

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